segunda-feira, 11 de junho de 2012

ARTE & BRILHO

“A maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer. Não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E, naturalmente, não querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso. Mas, sem dúvida, estará confundindo a terra com a água, e um dia morrerá afogado"... (Hermann Hesse) 

 PARA LER OUVINDO: 

A.s.: Tá, sei que este texto ficou muito longo. Mas esta crônica não foi feita para quem tem preguiça de ler. Os escritos abaixo são para quem gosta de ler e, principalmente, para quem não sabe ler. Diz respeito a eles, apenas...
 
Em seu uniforme de trabalho, há os seguintes dizeres: ARTE E BRILHO...

Sua pele é de cor escura. Aparenta ter seus 40 e poucos anos, mas há pouquíssimas rugas naquele rosto reluzente. O cabelo crespo ostenta um corte curto, como o de um rapaz – ousadia e um atrevimento tal que apenas as feministas, de personalidade muito forte, são capazes de exercer com tamanha naturalidade. Na orelha direita, carrega sempre um galhinho de arruda para espantar o mau olhado. E funciona! A felicidade que essa senhora deixa transparecer é mesmo digna de inveja e capaz de irritar até aquela gente de ar blàzê, que diz para deixá-los brincar de ser feliz. Só mesmo um galho de arruda, na orelha direita, para manter esta felicidade,  tão verdadeira e irritante, inabalável e no gerúndio...

A primeira vez em que me deparei com esta senhora de sorriso fácil, jurei tratar-se de uma demente. Só os loucos sabem sorrir daquela maneira, sem se esforçar. Somente os malucos conseguem cantar e dançar sem música e sem se preocuparem se as pessoas ao redor estão olhando. Apenas um insano é capaz de perguntar para um desconhecido se ele está bem, em tom inquisidor, exigindo sempre a mesma reposta positiva – “tudo ótimo!”. Quando aquela desconhecida me fez esta “pergunta”, pela primeira vez, fui pego desprevenido, estava submerso em meu importante mundo pragmático, cheio de razão e de verdades absolutas e de instruções. Então, para ganhar tempo, fingi que não tinha escutado e, quando perguntei o que havia dito, com profundo desprezo, a fiz entender que achava que ela estava falando com outra pessoa, mesmo em horário de almoço, mesmo só havendo nós dois naquela repartição. O tempo que consegui ganhar foi muito curto e a inusitada situação embaralhou meus fatigados pensamentos. Não consegui pensar em uma boa resposta, simples e objetiva. E como a senhora sorridente plantou-se na minha frente e parecia que dali não arredaria pé se não obtivesse resposta, assenti atabalhoadamente com a cabeça e consegui executar um sorriso forçado para dar mais naturalidade à situação e para que  não desconfiasse que enxergava sua loucura – desnudar  uma mulher, logo no primeiro encontro, sem a menor intimidade, ainda que ela tenha tomado a iniciativa, é algo constrangedor, não é de bom tom. Além do mais, não se deve contrariar os loucos.

E, se de médico e louco todo mundo tem um pouco, assumi o papel superior que melhor cabe a uma pessoa instruída, que está um plano acima, como eu. Como médico de loucos, logo, diagnostiquei na CID: estou diante de um caso F22. No popular, 22! Só uma doida varrida pode recolher o lixo e varrer os chãos de uma repartição pública com tamanha alegria de viver e tamanho gosto de existir. Coitada, é uma alienada, não sabe nada do mundo e terá de reencarnar por várias vezes para alcançar a evolução espiritual e o lugar dos sábios. Valha-me, Deus! Como pode alguém não levar a vida a sério?

Com o passar do tempo, me acostumei com aquela senhora e, diante da mesma pergunta diária, lhe obedecia e respondia sem apreço: “tudo ótimo!”. Então, sempre após minha resposta, ela gargalhava e dizia: “é isso aí! Amanhã, quero ver você mais ótimo ainda”. Confesso que a felicidade, sem igual, que esta senhora carrega consigo, junto à arruda, continuava a me irritar. No mundo real, não há lugar para pessoas verdadeiramente felizes. Este tipo de felicidade é uma ofensa! Como alguém pode desconsiderar por completo todos os males e todas as dores do mundo? Como podem enxergar apenas o que lhes convém? Como conseguem omitir-se de suas responsabilidades políticas e não refletirem a fundo sobre a parte de culpa que lhes cabe de todas estas guerras e de outras misérias humanas? Este tipo de felicidade é própria dos que se julgam inocentes: dos generais e seus soldados – em  quartéis e acantonamentos, dos empresários e seus empregados – industrializados, dos políticos e seus eleitores – muito mais políticos, dos jornais e seus jornalistas – amantes da insignificância e dos jogos de interesses. Mas, se nem o próprio oprimido olha por si, sofre por si, os revolucionários e Deus estão sós e perdidos...

Em uma rara tarde de bom humor, ao chegar à repartição e antes que ela fizesse a velha pergunta vespertina: “boa tardu, tudo benho com você?”, mostrei-a meu cartão do transporte coletivo e pedi para que lesse em alto e bom som. Nele, estava escrito a resposta que ela mais gostava de ouvir após aquela pergunta – ÓTIMO!

E, que ótimo! A senhora da limpeza ficou em silêncio quase que por uma eternidade, meu sorriso forçado já se mostrava cansado e perdeu a força quando, para minha surpresa, consegui limpar aquela felicidade verdadeira e irreal, colocando no lugar um semblante real e de constrangimento. A senhora (in)feliz revelou: “não sei ler”.

Eureka! Como não desconfiara? Apenas uma analfabeta, em pleno 2012, poderia ser feliz de causar inveja. Somente alguém sem instrução poderia agir com tamanho desdém diante do mundo. Talvez, eu tenha sido o responsável pelo primeiro encontro daquela senhora, de pele escura, com a escuridão. E estava orgulhoso por isso! Nem mesmo a arruda, na orelha direita, fora capaz de me deter. Desta vez, como um juiz dos seres inferiores, sentenciei (em pensamento): "é bom que ela sinta, ao menos por alguns minutos, o gosto amargo e real do mundo. É bom que ela perceba que, do lado de cá, nada é ótimo!". E, nesta tarde, ela e sua felicidade se foram, fugiram, assim como foge o poderoso para o poder, o rico para o dinheiro e o subserviente para a submissão...

Algum tempo depois, a inveja e a vaidade me fizeram considerar que o melhor a fazer era apresentá-la à possibilidade de aprender a ler. Assim, aquela senhora poderia começar a se instruir e, mais tarde, começar a conhecer o mundo. O plano era perfeito, não tinha escapatória, mais cedo ou mais tarde, ela pertenceria ao nosso mundo miserável, angustiado, pobre, infeliz, nobre, instruído e real!  Daqui a um tempo, até que enfim, o conhecimento dará cabo, de uma vez por todas, daquela felicidade vergonhosa e irritante.

Procurei me informar na Secretaria de Educação do Estado. Encontrei um programa chamado EJA (Educação para Jovens e Adultos) e deixei tudo no jeito, só faltava fazer a matrícula. Desta vez, como um descobridor da lâmpada, presunçoso por  iluminar uma vida ignorante e planejando fazê-la enxergar o pior e, como eu, desiludir-se da vida, procurei aquela feliz senhora para contar-lhe a novidade e começar a empurrá-la à infelicidade. Encontrei-a limpando o corredor que dava para porta de entrada, corri na direção dela. Falei da novidade em tom vertical, de cima para baixo, como quem dá esmola e semeia costumes ruins. Pega desprevenida, mas sem sorrir forçado, de forma serena, fez que não com a cabeça. Por um instante, achei que ela não tivesse conseguido compreender o que acabara de lhe dizer ou que estava tentando ganhar tempo e pensar numa boa resposta. Então, rapidamente, sem vacilar, comecei a repetir... Ela interpelou, erguendo o braço, do mesmo lado da arruda, e colocou a mão sobre meu ombro esquerdo, o ombro mais próximo ao coração. Me calei...

Com aquele mesmo sorriso dos loucos, agradeceu-me de pronto pela preocupação e disse que, por atitudes como essa, me tornara ainda mais ótimo em seu conceito. Mas recusou a oferta e explicou o motivo de não querer aprender a ler.

“Olha, Ótimo, muito obrigada, meu filho! Mas sou feliz assim e, para mim, está bom demais! Senão, começo a colocar coisas na cabeça”. Fez uma pausa, puxou-me para perto - deu dois tapinhas na minha cabeça, de forma carinhosa, como quando queremos consolar pessoas queridas. Ou como quando abraçamos pessoas bem menores do que a gente. E realmente, de repente, ela me parecia tão maior! - Retomou: “E isso, ficar pensando, é complicado. Você sabe disso melhor do que eu, né?!”. Concluiu com esta pergunta afirmativamente retórica, deixando entender que enxergava minha loucura, minhas angústias, meus tormentos e minha infelicidade. Como se dominasse as mais belas coisas do espírito, da arte e do pensamento. Como quando um exímio jogador de xadrez acaba de aplicar mais um xeque-mate. Ouvi as palavras finais olhando para baixo, para o chão mais limpo e brilhante que já vi e no qual já pisei, mas posso jurar que, enquanto ela dizia e finalizava sua justificativa, me olhava com pena e compaixão.

Despediu-se, transformando o meio abraço em um abraço completo, forte, irritantemente feliz e agradecido. Olhou em meus olhos, sacudiu-me pelos braços, como quando se quer despertar alguém. Parecia ter experiência nisso, em despertar pessoas, e fez de maneira afável. Tentei me recompor, olhei-a, e ela continuava sorrindo sem usar de força.

Atordoado, segui o corredor que dava para porta de saída, corri para o lado de fora. Minhas crenças não encontravam mais ar que respirar. Aquela mulher atrevida me desnudara desde o primeiro encontro. Sabia, e muito bem, do meu horror pela política. Da minha tristeza pelo palavreado vão e pela conduta irresponsável dos partidos e da imprensa. Sabia do meu desespero diante das guerras – as presentes, as passadas e as que ainda estão por vir. E do meu desprezo pela maneira como hoje se pensa, se lê, se edifica, se compõe música, se celebram as festas e se educa!

Fui embora, acabara o expediente. Durante o caminho de volta, tentei procurar na mente se já fora feliz assim, verdadeiramente, algum dia. Se já sentira, algum dia, felicidade tamanha que me fizesse um ser capaz de renúncias. Encontrei repentinos clarões da minha infância e, talvez, até da minha adolescência. Por um momento, senti inveja daquela criança e daquele jovem, que possuíam meu rosto e meu nome. Senti inveja daqueles que insisto em renegar e apagar da lembrança, só por terem sido sábios ignorantes, pessoas que renunciaram às instruções e aos padrões. Neste dia, voltei por atalhos pouco iluminados e pareciam muito mais longos. Ah, quanta miséria e desatino temos de passar para chegar, e nos sentir, em casa! E não temos quem nos guie, a não ser nosso desejo de chegar...

Com as chaves na mão, pensei o quão sábia é aquela senhora: “Conhecimento” ou Felicidade? Ela parece ter escolhido, e é verdadeiramente FELIZ...

P.s.: Jamais esquecerei! Em seu uniforme de trabalho, há os seguintes dizeres: ARTE E BRILHO...




 por João Vítor Ribeiro




Trechos & Citações & Alusões:

- O Lobo da Estepe - Hermann Hesse 

quarta-feira, 2 de maio de 2012

TIMSHEL!

“A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.” (Marina Colasanti)

PARA LER OUVINDO:


Os últimos, quase, 27 anos fizeram de mim o que nem sei quem sou. Tenho caminhado, andado por aí sem parar, sem me permitir descansar, sem considerar a possibilidade tão real (muitas vezes, a única verdadeiramente real) de capitular. E sempre em busca da “verdade com V maiúsculo” do David Gênio, o amigo yankee aí de baixo do João.

Mas essa busca sempre foi insana, porque todas as minhas ruas, meus caminhos e vielas e estradas e becos e alamedas e labirintos quedaram em nada. Quer dizer, no meu caso, encontrar o nada no fim seria uma espécie de bênção. O que sempre me esperou foi o abismo. Sim! O mesmo abismo do João e do Holden – o cretino, também amigo do João, 10 anos mais novo e 21 séculos mais sábio.

A única diferença entre eu e eles (ops!), entre mim e eles é que eu nunca me permiti a queda. Sempre me equilibrei na margem à custa de um esforço temerário. À custa de me acostumar, como diria uma amiga, dessa vez, minha, Marina Colasanti – “A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.(...) E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.(...) A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.(...) A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.(...) A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.”

A gente se acostuma, se equilibra, tentando seguir em frente, tentando, feito equilibrista, atravessar uma linha imaginária sobre o abismo que supomos transponível. Aí está o erro. O costume nos cega e não nos deixa ver que o único caminho digno e consciente é a queda. Cair, cair, cair... Como em uma espécie de fim. Capitular. Desistir. Abrir mão. Sim! É um “tipo horrível de queda”. Mas, assim como o sono de Pessoa, “O cansaço tem ao menos brandura /  O abatimento tem ao menos sossego / A rendição é ao menos o fim do esforço / O fim é ao menos o já não haver que esperar.”

E, se nada esperamos, não somos sustentados pela esperança de sermos bem-sucedidos. Assim como Sísifo, do mito trágico tão linda e desesperançosamente contado pelo meu camarada francês Camus, nos tornamos heróis conscientes. Então, rolo minha pedra morro acima, mesmo sabendo que, no topo, o trabalho recomeçará. Impotente, revoltada, mas conhecendo toda extensão de minha condição miserável: é nela que penso enquanto desço mais uma vez. A lucidez que deveria produzir o meu tormento consome, com a mesma força, a minha vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo. A cada um desses momentos em que deixo os cimos e me afundo pouco a pouco no covil dos deuses, sou superior ao meu destino. Sou mais forte que meu rochedo.

E é essa liberdade que só a queda pode dar que me interessa. Ser superior a qualquer destino. A qualquer modelo. A qualquer padrão. Ter o prazer de não corresponder a nenhuma expectativa. De não seguir o rebanho. De não ter que ser medíocre para ser aceita. De não gastar a minha vida em parecer. De não ter que competir. Assumir as rédeas do meu caminho. Toda a alegria silenciosa da queda está aí. Meu destino me pertence. Meu rochedo é minha questão. Quando contemplo meu tormento, faço calar todos os ídolos. Não existe sol nem sombra, e é preciso conhecer a noite. Digo sim e meu esforço não acaba mais. Tenho um destino pessoal e não há nenhuma destinação superior. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” E minha resposta é timshel! Essa palavra hebraica que um outro yankee sensacional, John Steinbeck, me ensinou. Poderás!

Poderei. Eu posso quando escolho a queda. Não encontrei ainda um caminho. Nem sei se irei encontrá-lo. O meu apelo humano ainda se confronta com o silêncio despropositado do mundo de forma absurda. Mas, como diria meu camarada latino-americano Gabo, “A beleza está nos olhos de quem sabe ver”... Ainda não encontrei a beleza... Mas estou aprendendo a ver!



 por Maria Carolina Ribeiro





Trechos, citações & alusões a Marina Colasanti, David Foster Wallace, Jerome David Salinger (O apanhador no campo de centeio), Fernando Pessoa, Albert Camus (O mito de Sísifo), John Steinbeck (A leste do Éden) e Gabriel García Márquez. 


segunda-feira, 16 de abril de 2012

Colcha de Retalhos – Recortes da Mente

“Não é o que se pode chamar de uma história original, mas não importa: é a vida real"... 

 PARA LER OUVINDO:

Os últimos, quase, 27 anos fizeram de mim o que sou – o que eu era até alguns minutos atrás ou o que serei daqui a alguns segundos. Há anos, me encontro e perco-me por um caminho obscuro e arriscado, temendo todo e qualquer final. Medo grande mesmo, sabe?! Ou seria, “Medo dos Grandes”? – só sente aquele tipo de pessoa que passa a vida inteira querendo ser “o grande” por ser tão pequena. Enfim, é aquele tipo de medo que me faz deitar encolhido quase sob o chão. Diminuído, diminuindo, até reencontrar minha tenra e segura posição fetal.

Submerso, nessa rota de colisão, olho fixamente, com raiva e complacência para um abismo. Encaro mesmo, até que ele me perceba e, olhando no fundo dos meus olhos, saiba quem sou. E não é qualquer abismo, este é específico - diz respeito a mim, apenas – tem o meu nome.

Tenho a nítida impressão de que estou caminhando para uma espécie de queda. Uma queda tremenda. Mas, honestamente, não sei de que espécie. Talvez, da espécie que faz com que a gente, aos trinta ou aos quarenta - não é do segundo tempo. Falo de tempo de vida, idade, claro!, sente-se num bar e odeie todo mundo que entra com jeito de fanático por futebol. Ou, então, aquele tipo de queda em que, após conseguirmos nos instruirmos o bastante, odeie todo mundo que diz: “É um segredo entre mim e você”. Talvez, daquela que a gente acaba em alguma repartição pública, atirando clipes no colega mais próximo ou em algum veículo de imprensa vendido, travestido de isento, silenciado por empresários e governos corruptos. Se tudo tem um preço, todos pagam o preço...

Este abismo, específico, para o qual olho e sigo marchando a passos largos, oferece um tipo especial de queda, um tipo horrível. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai e cai e cai...  A coisa toda se aplica aos homens que, assim como eu ou como meu amigo norte-americano Holden Caulfield – Ah, o Holden é um barato! É quase 10 anos mais moço do que eu e cretino que só. Rs. É 20 anos mais maduro que o pessoal da minha faixa etária e, entre as pessoas que conheço, 21 séculos mais evoluído, no duro. Vocês não podem morrer sem conhecê-lo. Mas como ia dizendo, as pessoas que sofrem este tipo de queda especialmente horrível é gente que, num momento ou noutro de suas vidas, procura alguma coisa que seu próprio meio não lhes pode proporcionar. Ou que pensavam que seu próprio meio poderia proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de começá-la de verdade. Estão me entendendo?!

“A caracerística do homem imaturo é aspirar a morrer nobremente por uma causa, enquanto que a característica do homem maduro é querer viver humildemente por uma causa”.

Por estranho que pareça, este pensamento acima, não foi escrito por um poeta. Foi escrito por um psicanalista chamado Wilhelm Stekel.

Fico assustado, sabe?! Me vejo, com toda a clareza, morrendo nobremente, de uma forma ou de outra, por uma causa qualquer absolutamente indigna. Não sei se estou vivo ou o quanto já morri, é difícil mensuramos o quanto há de vida em nós ou quantas mortes ainda nos restam, não dá pra saber ou controlar como nos videogames, mas ainda me esforço para permanecer consciente. É extremamente difícil! Envolve atenção e disciplina. Requer muita força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão permanecer conscientes, ou simplesmente não estarão a fim.

O que me conforta é descobrir que não sou a primeira pessoa a ter medo e ficar confusa e assustada, e até enojada diante do abismo. Sei que não estou de maneira nenhuma sozinho nesse terreno. Muitos homens, muitos mesmo, já enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que enfrento nos últimos, quase, 27 anos. Felizmente, alguns deles guardaram registros de seus problemas. Quando quiser, posso aprender com eles. Da mesma forma que, algum dia, se eu tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa comigo. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. Além de história, é estória. É poesia.

Outro amigo meu, David Foster Wallace, também norte-americano – Ah, esses yankees! Em sua maioria, são medíocres, pragmáticos, sem criatividade e desinteressantes. Mas quando danam pra ser boa gente, são geniais! Nem parecem estadunidenses... Voltando ao David Gênio, ele deixou registros preciosos para pessoas como eu e o cretino do Holden.

 Um desses registros alerta:

“A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O mundo jamais desencorajará estes tipos de veneração, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e “liberdade” pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor”.

Contudo, no fim (já confessei, tenho muito medo dos finais!), algumas perguntas se tornam retóricas. Mas a obviedade da resposta é o silêncio que só se romperá através do tempo. Esta espera dificulta, um pouco, as coisas. Para casos como o meu, quase 10 anos mais velho do que o cretino do Holden, não se pode perder tempo.

Por vezes, ainda, em meu minúsculo reinado, acordo de madrugada e sinto uma solidão tremenda – Daquele tipo de solidão que sente uma criança num berço de ouro e a ferrugem ao seu redor. Mas, aí, me cubro com essa colcha de retalhos e tento sonhar...

É, acho que um dia desses vou ter que decidir para aonde quero ir e começar a ir para lá. Sem perder um minuto que seja...



 por João Vítor Ribeiro




Trechos & Citações & Alusões:

- A Liberdade De Ver Os Outros - David Foster Wallace
- O Apanhador No Campo De Centeio - J. D. Salinger
- Nunca Mais - Engenheiros do Hawaii