“A maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer. Não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E, naturalmente, não querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso. Mas, sem dúvida, estará confundindo a terra com a água, e um dia morrerá afogado"... (Hermann Hesse)
PARA LER OUVINDO:
A.s.: Tá, sei que este texto ficou muito longo. Mas esta crônica não foi feita para quem tem preguiça de ler. Os escritos abaixo são para quem gosta de ler e, principalmente, para quem não sabe ler. Diz respeito a eles, apenas...
Sua pele é de cor escura. Aparenta ter seus 40 e poucos anos, mas há pouquíssimas rugas naquele rosto reluzente. O cabelo crespo ostenta um corte curto, como o de um rapaz – ousadia e um atrevimento tal que apenas as feministas, de personalidade muito forte, são capazes de exercer com tamanha naturalidade. Na orelha direita, carrega sempre um galhinho de arruda para espantar o mau olhado. E funciona! A felicidade que essa senhora deixa transparecer é mesmo digna de inveja e capaz de irritar até aquela gente de ar blàzê, que diz para deixá-los brincar de ser feliz. Só mesmo um galho de arruda, na orelha direita, para manter esta felicidade, tão verdadeira e irritante, inabalável e no gerúndio...
A primeira vez em que me deparei com esta senhora de sorriso fácil, jurei tratar-se de uma demente. Só os loucos sabem sorrir daquela maneira, sem se esforçar. Somente os malucos conseguem cantar e dançar sem música e sem se preocuparem se as pessoas ao redor estão olhando. Apenas um insano é capaz de perguntar para um desconhecido se ele está bem, em tom inquisidor, exigindo sempre a mesma reposta positiva – “tudo ótimo!”. Quando aquela desconhecida me fez esta “pergunta”, pela primeira vez, fui pego desprevenido, estava submerso em meu importante mundo pragmático, cheio de razão e de verdades absolutas e de instruções. Então, para ganhar tempo, fingi que não tinha escutado e, quando perguntei o que havia dito, com profundo desprezo, a fiz entender que achava que ela estava falando com outra pessoa, mesmo em horário de almoço, mesmo só havendo nós dois naquela repartição. O tempo que consegui ganhar foi muito curto e a inusitada situação embaralhou meus fatigados pensamentos. Não consegui pensar em uma boa resposta, simples e objetiva. E como a senhora sorridente plantou-se na minha frente e parecia que dali não arredaria pé se não obtivesse resposta, assenti atabalhoadamente com a cabeça e consegui executar um sorriso forçado para dar mais naturalidade à situação e para que não desconfiasse que enxergava sua loucura – desnudar uma mulher, logo no primeiro encontro, sem a menor intimidade, ainda que ela tenha tomado a iniciativa, é algo constrangedor, não é de bom tom. Além do mais, não se deve contrariar os loucos.
E, se de médico e louco todo mundo tem um pouco, assumi o papel superior que melhor cabe a uma pessoa instruída, que está um plano acima, como eu. Como médico de loucos, logo, diagnostiquei na CID: estou diante de um caso F22. No popular, 22! Só uma doida varrida pode recolher o lixo e varrer os chãos de uma repartição pública com tamanha alegria de viver e tamanho gosto de existir. Coitada, é uma alienada, não sabe nada do mundo e terá de reencarnar por várias vezes para alcançar a evolução espiritual e o lugar dos sábios. Valha-me, Deus! Como pode alguém não levar a vida a sério?
Com o passar do tempo, me acostumei com aquela senhora e, diante da mesma pergunta diária, lhe obedecia e respondia sem apreço: “tudo ótimo!”. Então, sempre após minha resposta, ela gargalhava e dizia: “é isso aí! Amanhã, quero ver você mais ótimo ainda”. Confesso que a felicidade, sem igual, que esta senhora carrega consigo, junto à arruda, continuava a me irritar. No mundo real, não há lugar para pessoas verdadeiramente felizes. Este tipo de felicidade é uma ofensa! Como alguém pode desconsiderar por completo todos os males e todas as dores do mundo? Como podem enxergar apenas o que lhes convém? Como conseguem omitir-se de suas responsabilidades políticas e não refletirem a fundo sobre a parte de culpa que lhes cabe de todas estas guerras e de outras misérias humanas? Este tipo de felicidade é própria dos que se julgam inocentes: dos generais e seus soldados – em quartéis e acantonamentos, dos empresários e seus empregados – industrializados, dos políticos e seus eleitores – muito mais políticos, dos jornais e seus jornalistas – amantes da insignificância e dos jogos de interesses. Mas, se nem o próprio oprimido olha por si, sofre por si, os revolucionários e Deus estão sós e perdidos...
Em uma rara tarde de bom humor, ao chegar à repartição e antes que ela fizesse a velha pergunta vespertina: “boa tardu, tudo benho com você?”, mostrei-a meu cartão do transporte coletivo e pedi para que lesse em alto e bom som. Nele, estava escrito a resposta que ela mais gostava de ouvir após aquela pergunta – ÓTIMO!
E, que ótimo! A senhora da limpeza ficou em silêncio quase que por uma eternidade, meu sorriso forçado já se mostrava cansado e perdeu a força quando, para minha surpresa, consegui limpar aquela felicidade verdadeira e irreal, colocando no lugar um semblante real e de constrangimento. A senhora (in)feliz revelou: “não sei ler”.
Eureka! Como não desconfiara? Apenas uma analfabeta, em pleno 2012, poderia ser feliz de causar inveja. Somente alguém sem instrução poderia agir com tamanho desdém diante do mundo. Talvez, eu tenha sido o responsável pelo primeiro encontro daquela senhora, de pele escura, com a escuridão. E estava orgulhoso por isso! Nem mesmo a arruda, na orelha direita, fora capaz de me deter. Desta vez, como um juiz dos seres inferiores, sentenciei (em pensamento): "é bom que ela sinta, ao menos por alguns minutos, o gosto amargo e real do mundo. É bom que ela perceba que, do lado de cá, nada é ótimo!". E, nesta tarde, ela e sua felicidade se foram, fugiram, assim como foge o poderoso para o poder, o rico para o dinheiro e o subserviente para a submissão...
Algum tempo depois, a inveja e a vaidade me fizeram considerar que o melhor a fazer era apresentá-la à possibilidade de aprender a ler. Assim, aquela senhora poderia começar a se instruir e, mais tarde, começar a conhecer o mundo. O plano era perfeito, não tinha escapatória, mais cedo ou mais tarde, ela pertenceria ao nosso mundo miserável, angustiado, pobre, infeliz, nobre, instruído e real! Daqui a um tempo, até que enfim, o conhecimento dará cabo, de uma vez por todas, daquela felicidade vergonhosa e irritante.
Procurei me informar na Secretaria de Educação do Estado. Encontrei um programa chamado EJA (Educação para Jovens e Adultos) e deixei tudo no jeito, só faltava fazer a matrícula. Desta vez, como um descobridor da lâmpada, presunçoso por iluminar uma vida ignorante e planejando fazê-la enxergar o pior e, como eu, desiludir-se da vida, procurei aquela feliz senhora para contar-lhe a novidade e começar a empurrá-la à infelicidade. Encontrei-a limpando o corredor que dava para porta de entrada, corri na direção dela. Falei da novidade em tom vertical, de cima para baixo, como quem dá esmola e semeia costumes ruins. Pega desprevenida, mas sem sorrir forçado, de forma serena, fez que não com a cabeça. Por um instante, achei que ela não tivesse conseguido compreender o que acabara de lhe dizer ou que estava tentando ganhar tempo e pensar numa boa resposta. Então, rapidamente, sem vacilar, comecei a repetir... Ela interpelou, erguendo o braço, do mesmo lado da arruda, e colocou a mão sobre meu ombro esquerdo, o ombro mais próximo ao coração. Me calei...
Com aquele mesmo sorriso dos loucos, agradeceu-me de pronto pela preocupação e disse que, por atitudes como essa, me tornara ainda mais ótimo em seu conceito. Mas recusou a oferta e explicou o motivo de não querer aprender a ler.
“Olha, Ótimo, muito obrigada, meu filho! Mas sou feliz assim e, para mim, está bom demais! Senão, começo a colocar coisas na cabeça”. Fez uma pausa, puxou-me para perto - deu dois tapinhas na minha cabeça, de forma carinhosa, como quando queremos consolar pessoas queridas. Ou como quando abraçamos pessoas bem menores do que a gente. E realmente, de repente, ela me parecia tão maior! - Retomou: “E isso, ficar pensando, é complicado. Você sabe disso melhor do que eu, né?!”. Concluiu com esta pergunta afirmativamente retórica, deixando entender que enxergava minha loucura, minhas angústias, meus tormentos e minha infelicidade. Como se dominasse as mais belas coisas do espírito, da arte e do pensamento. Como quando um exímio jogador de xadrez acaba de aplicar mais um xeque-mate. Ouvi as palavras finais olhando para baixo, para o chão mais limpo e brilhante que já vi e no qual já pisei, mas posso jurar que, enquanto ela dizia e finalizava sua justificativa, me olhava com pena e compaixão.
Despediu-se, transformando o meio abraço em um abraço completo, forte, irritantemente feliz e agradecido. Olhou em meus olhos, sacudiu-me pelos braços, como quando se quer despertar alguém. Parecia ter experiência nisso, em despertar pessoas, e fez de maneira afável. Tentei me recompor, olhei-a, e ela continuava sorrindo sem usar de força.
Atordoado, segui o corredor que dava para porta de saída, corri para o lado de fora. Minhas crenças não encontravam mais ar que respirar. Aquela mulher atrevida me desnudara desde o primeiro encontro. Sabia, e muito bem, do meu horror pela política. Da minha tristeza pelo palavreado vão e pela conduta irresponsável dos partidos e da imprensa. Sabia do meu desespero diante das guerras – as presentes, as passadas e as que ainda estão por vir. E do meu desprezo pela maneira como hoje se pensa, se lê, se edifica, se compõe música, se celebram as festas e se educa!
Fui embora, acabara o expediente. Durante o caminho de volta, tentei procurar na mente se já fora feliz assim, verdadeiramente, algum dia. Se já sentira, algum dia, felicidade tamanha que me fizesse um ser capaz de renúncias. Encontrei repentinos clarões da minha infância e, talvez, até da minha adolescência. Por um momento, senti inveja daquela criança e daquele jovem, que possuíam meu rosto e meu nome. Senti inveja daqueles que insisto em renegar e apagar da lembrança, só por terem sido sábios ignorantes, pessoas que renunciaram às instruções e aos padrões. Neste dia, voltei por atalhos pouco iluminados e pareciam muito mais longos. Ah, quanta miséria e desatino temos de passar para chegar, e nos sentir, em casa! E não temos quem nos guie, a não ser nosso desejo de chegar...
Com as chaves na mão, pensei o quão sábia é aquela senhora: “Conhecimento” ou Felicidade? Ela parece ter escolhido, e é verdadeiramente FELIZ...
P.s.: Jamais esquecerei! Em seu uniforme de trabalho, há os seguintes dizeres: ARTE E BRILHO...
por João Vítor Ribeiro
Trechos & Citações & Alusões:
- O Lobo da Estepe - Hermann Hesse