quarta-feira, 2 de maio de 2012

TIMSHEL!

“A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.” (Marina Colasanti)

PARA LER OUVINDO:


Os últimos, quase, 27 anos fizeram de mim o que nem sei quem sou. Tenho caminhado, andado por aí sem parar, sem me permitir descansar, sem considerar a possibilidade tão real (muitas vezes, a única verdadeiramente real) de capitular. E sempre em busca da “verdade com V maiúsculo” do David Gênio, o amigo yankee aí de baixo do João.

Mas essa busca sempre foi insana, porque todas as minhas ruas, meus caminhos e vielas e estradas e becos e alamedas e labirintos quedaram em nada. Quer dizer, no meu caso, encontrar o nada no fim seria uma espécie de bênção. O que sempre me esperou foi o abismo. Sim! O mesmo abismo do João e do Holden – o cretino, também amigo do João, 10 anos mais novo e 21 séculos mais sábio.

A única diferença entre eu e eles (ops!), entre mim e eles é que eu nunca me permiti a queda. Sempre me equilibrei na margem à custa de um esforço temerário. À custa de me acostumar, como diria uma amiga, dessa vez, minha, Marina Colasanti – “A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.(...) E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.(...) A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.(...) A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.(...) A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.”

A gente se acostuma, se equilibra, tentando seguir em frente, tentando, feito equilibrista, atravessar uma linha imaginária sobre o abismo que supomos transponível. Aí está o erro. O costume nos cega e não nos deixa ver que o único caminho digno e consciente é a queda. Cair, cair, cair... Como em uma espécie de fim. Capitular. Desistir. Abrir mão. Sim! É um “tipo horrível de queda”. Mas, assim como o sono de Pessoa, “O cansaço tem ao menos brandura /  O abatimento tem ao menos sossego / A rendição é ao menos o fim do esforço / O fim é ao menos o já não haver que esperar.”

E, se nada esperamos, não somos sustentados pela esperança de sermos bem-sucedidos. Assim como Sísifo, do mito trágico tão linda e desesperançosamente contado pelo meu camarada francês Camus, nos tornamos heróis conscientes. Então, rolo minha pedra morro acima, mesmo sabendo que, no topo, o trabalho recomeçará. Impotente, revoltada, mas conhecendo toda extensão de minha condição miserável: é nela que penso enquanto desço mais uma vez. A lucidez que deveria produzir o meu tormento consome, com a mesma força, a minha vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo. A cada um desses momentos em que deixo os cimos e me afundo pouco a pouco no covil dos deuses, sou superior ao meu destino. Sou mais forte que meu rochedo.

E é essa liberdade que só a queda pode dar que me interessa. Ser superior a qualquer destino. A qualquer modelo. A qualquer padrão. Ter o prazer de não corresponder a nenhuma expectativa. De não seguir o rebanho. De não ter que ser medíocre para ser aceita. De não gastar a minha vida em parecer. De não ter que competir. Assumir as rédeas do meu caminho. Toda a alegria silenciosa da queda está aí. Meu destino me pertence. Meu rochedo é minha questão. Quando contemplo meu tormento, faço calar todos os ídolos. Não existe sol nem sombra, e é preciso conhecer a noite. Digo sim e meu esforço não acaba mais. Tenho um destino pessoal e não há nenhuma destinação superior. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” E minha resposta é timshel! Essa palavra hebraica que um outro yankee sensacional, John Steinbeck, me ensinou. Poderás!

Poderei. Eu posso quando escolho a queda. Não encontrei ainda um caminho. Nem sei se irei encontrá-lo. O meu apelo humano ainda se confronta com o silêncio despropositado do mundo de forma absurda. Mas, como diria meu camarada latino-americano Gabo, “A beleza está nos olhos de quem sabe ver”... Ainda não encontrei a beleza... Mas estou aprendendo a ver!



 por Maria Carolina Ribeiro





Trechos, citações & alusões a Marina Colasanti, David Foster Wallace, Jerome David Salinger (O apanhador no campo de centeio), Fernando Pessoa, Albert Camus (O mito de Sísifo), John Steinbeck (A leste do Éden) e Gabriel García Márquez. 


Um comentário:

  1. Orgulho de vocês. Aliás, prazer! Prazer de estar aí perto sintonizado. Na verdade, prazer por estar tentando pegar um pouco da frequência que vocês estão sintonizados. (ow, realmente não sei se o gerúndio aí é permitido...)

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