“A gente se acostuma
para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar,
se perde de si mesma.” (Marina Colasanti)
PARA LER OUVINDO:
Os últimos, quase, 27 anos fizeram de mim o que nem sei quem sou. Tenho caminhado, andado por aí sem parar, sem me permitir descansar, sem considerar a possibilidade tão real (muitas vezes, a única verdadeiramente real) de capitular. E sempre em busca da “verdade com V maiúsculo” do David Gênio, o amigo yankee aí de baixo do João.
Mas essa busca sempre foi insana, porque todas as minhas ruas, meus caminhos e vielas e estradas e becos e alamedas e labirintos quedaram em nada. Quer dizer, no meu caso, encontrar o nada no fim seria uma espécie de bênção. O que sempre me esperou foi o abismo. Sim! O mesmo abismo do João e do Holden – o cretino, também amigo do João, 10 anos mais novo e 21 séculos mais sábio.
A única diferença entre eu e eles (ops!), entre mim e eles é que eu nunca me permiti a queda. Sempre me equilibrei na margem à custa de um esforço temerário. À custa de me acostumar, como diria uma amiga, dessa vez, minha, Marina Colasanti – “A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.(...) E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.(...) A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.(...) A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.(...) A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.”
A gente se acostuma, se equilibra, tentando seguir em frente, tentando, feito equilibrista, atravessar uma linha imaginária sobre o abismo que supomos transponível. Aí está o erro. O costume nos cega e não nos deixa ver que o único caminho digno e consciente é a queda. Cair, cair, cair... Como em uma espécie de fim. Capitular. Desistir. Abrir mão. Sim! É um “tipo horrível de queda”. Mas, assim como o sono de Pessoa, “O cansaço tem ao menos brandura / O abatimento tem ao menos sossego / A rendição é ao menos o fim do esforço / O fim é ao menos o já não haver que esperar.”
E, se nada esperamos, não somos sustentados pela esperança de sermos bem-sucedidos. Assim como Sísifo, do mito trágico tão linda e desesperançosamente contado pelo meu camarada francês Camus, nos tornamos heróis conscientes. Então, rolo minha pedra morro acima, mesmo sabendo que, no topo, o trabalho recomeçará. Impotente, revoltada, mas conhecendo toda extensão de minha condição miserável: é nela que penso enquanto desço mais uma vez. A lucidez que deveria produzir o meu tormento consome, com a mesma força, a minha vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo. A cada um desses momentos em que deixo os cimos e me afundo pouco a pouco no covil dos deuses, sou superior ao meu destino. Sou mais forte que meu rochedo.
E é essa liberdade que só a queda pode dar que me interessa. Ser superior a qualquer destino. A qualquer modelo. A qualquer padrão. Ter o prazer de não corresponder a nenhuma expectativa. De não seguir o rebanho. De não ter que ser medíocre para ser aceita. De não gastar a minha vida em parecer. De não ter que competir. Assumir as rédeas do meu caminho. Toda a alegria silenciosa da queda está aí. Meu destino me pertence. Meu rochedo é minha questão. Quando contemplo meu tormento, faço calar todos os ídolos. Não existe sol nem sombra, e é preciso conhecer a noite. Digo sim e meu esforço não acaba mais. Tenho um destino pessoal e não há nenhuma destinação superior. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” E minha resposta é timshel! Essa palavra hebraica que um outro yankee sensacional, John Steinbeck, me ensinou. Poderás!
Poderei. Eu posso quando escolho a queda. Não encontrei ainda um caminho. Nem sei se irei encontrá-lo. O meu apelo humano ainda se confronta com o silêncio despropositado do mundo de forma absurda. Mas, como diria meu camarada latino-americano Gabo, “A beleza está nos olhos de quem sabe ver”... Ainda não encontrei a beleza... Mas estou aprendendo a ver!
por Maria Carolina Ribeiro
Trechos, citações & alusões a Marina Colasanti, David Foster Wallace, Jerome David Salinger (O apanhador no campo de centeio), Fernando Pessoa, Albert Camus (O mito de Sísifo), John Steinbeck (A leste do Éden) e Gabriel García Márquez.